Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

REALINHAR-SE COM O ESPÍRITO DA SAGRADA LITURGIA

 
NECESSÁRIA E DESAFIANTE TAREFA ECLESIAL
 
Palestra proferida por Frei Ariovaldo na abertura do Seminário Nacional de Liturgia em Itaici.
                                                         Frei José Ariovaldo da Silva, OFM
 
1.      Para pensarmos a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II e entendê-la em profundidade, em meio a seus sucessos e percalços, é bom que estejamos antenados com o que veio antes da reforma, a saber, com o movimento litúrgico. E para entendermos o movimento litúrgico, com seus percalços e sucessos, é bom que estejamos bem antenados com as origens de um grande mal-estar litúrgico que, talvez tarde demais, levou à necessidade de reformas.
2.      Mas creio que não caberia aqui falar ex-professo sobre o movimento litúrgico, caindo até no risco de ser repetitivo[1]. Nem vou falar das origens do dito mal-estar litúrgico[2]. Aliás, nem temos tempo pra tudo isso. O que eu quero é partilhar um pouco com vocês sobre algo que está no meu coração e não pára de me incomodar, a partir de minhas pesquisas, sobretudo sobre o movimento litúrgico no Brasil[3]. Refiro-me a elementos sutilmente agarrados no inconsciente coletivo do corpo eclesial como padrão antigo que sempre dificultou e vem dificultando todo o processo de reforma... Mais ou menos como uma pessoa que, num dado momento de sua história pessoal, incorporou padrões de comportamento que a levaram a tornar-se inflexível, autoritária, agressiva, egoísta, vaidosa, ciumenta, irresponsável e até violenta, causando muito sofrimento e dor a si e aos outros; e para voltar a uma equilibrada e sadia convivência social, depois, tem enorme dificuldade em assumir tais padrões como nocivos à sua saúde e à dos outros, e em retornar ao essencial para viver com qualidade de vida. Assim, no corpo eclesial, historicamente foram assimilados padrões de compreensão da liturgia, bem como de comportamento ‘litúrgico’ e ‘espiritual’ que, direta ou indiretamente, não deixaram de ser nocivos à Igreja, ao nosso planeta e à sociedade humana como um todo...

3.      Por exemplo (coincidência? penso que não!), foi precisamente no segundo milênio, quando a liturgia se transformou num formal fator clerical, e a grande massa popular, isolada da “fonte primeira e indispensável do espírito cristão” (que é a liturgia!), teve de ‘sobreviver’ (ainda bem!) com o apoio dos mais variados tipos de devoções, foi então que o Ocidente cristão perpetrou os piores desmandos morais e as mais intensas destruições de vidas humanas, em guerras fratricidas, inquisições, perseguições contra não-cristãos, invasões e destruição de terras alheias, escravizações, tiranias opressoras, sangrentas ditaduras... Pensemos no que cristãos (batizados, casados na igreja, freqüentadores de missas, procissões, rezas, novenas etc.!...) fizeram com os índios nesta nossa América Latina e com os escravos negros!... Debilitados pela falta do verdadeiro espírito da liturgia e anestesiados pela cobiça do ouro e a sede de poder, esses cristãos não conseguiram enxergar mais nem a sua própria insanidade torturante!... E como um Bartolomeu de las Casas, por exemplo, exatamente a partir do espírito da celebração da Eucaristia, soube reagir profeticamente contra a insanidade escravizadora, sofrendo como conseqüência a perseguição e a deportação!... Enfim, a alienação do verdadeiro espírito da liturgia levou a tudo isso... Voltar à liturgia, ou melhor ainda, a uma espiritualidade de fato litúrgica, libertadora, agora resgatada pela reforma do concílio Vaticano II, continua a ser o grande desafio, inclusive – arrisco dizer – para a sobrevivência do nosso planeta.

4.      Creio que uma tomada de consciência do que está nos bastidores históricos de nosso inconsciente coletivo cristão ocidental, ajude a contribuir para, neste Seminário, conversarmos em profundidade sobre a Sacrosanctum Concilium, em torno de seus eixos principais, eventuais lacunas, dificuldades em sua recepção e, enfim, pensarmos juntos possíveis caminhos ‘terapêuticos’ para sanar padrões ‘litúrgicos’ e ‘espirituais’ distorcidos do inconsciente coletivo em nosso corpo eclesial.
5.      “O movimento litúrgico – resume Matías Augé - é um fenômeno eclesial e até mesmo histórico-cultural que afunda suas raízes na época do Iluminismo, tem suas primeiras manifestações tangíveis na renovação do monacato beneditino de Solesmes no século 19 por obra de Dom Prosper Guéranger (1805-1875), entra na sua fase clássica e de expansão com o pontificado de Pio X (1903-1914), para aproar depois nas soleiras do concílio Vaticano II”[4]. Significou a reação paulatina e benéfica a um mal-estar litúrgico que havia tomado conta do corpo eclesial do Ocidente, a partir dos séculos 8 e 9, que se agravou nos séculos 12 a 16 e que perdurou pelos séculos afora. Nem o concílio de Trento conseguiu sanar o mal-estar. E, cá entre nós, até mesmo a reforma do concílio Vaticano II está enfrentando dificuldades na implantação do verdadeiro espírito litúrgico, da liturgia como a verdadeira oração da Igreja, de fato participada por todo povo, primeira e indispensável fonte do verdadeiro espírito cristão. E já se passaram quase 50 anos!... Bem que profetizou o iniciador do movimento litúrgico clássico, Lambert Beaduin, há quase 100 anos atrás: “O trabalho de renovação litúrgica será árduo: é bom se convencer disso; as multidões levaram séculos para desaprender o verdadeiro espírito cristão, contido na liturgia; muito tempo agora será necessário para aprendê-lo de novo”[5].

6.      O que quis o movimento litúrgico e, agora, a reforma do concílio Vaticano II? No fundo, resgatar o Essencial na vida cultual da Igreja, Aquilo que está para além de todos os padrões humanos que, no corpo eclesial, acabaram roubando a cena do Espírito que anima este corpo, mas que continuam (como eu disse) agarrados no inconsciente coletivo do nosso corpo eclesial. O que se busca resgatar: a) a divina Liturgia (com maiúsculo) celebrada, isto é, experimentada como Presença libertadora do mistério pascal na ação ritual mesma, sufocada que fora por um frio corpo doutrinal “sobre” Deus e seus mistérios; b) a divina Liturgia (com maiúsculo) celebrada como experiência orante por excelência de cada cristão em particular e de todo povo reunido, fonte primeira e indispensável do verdadeiro espírito cristão, sufocada que fora pelo acúmulo de manifestações piedosas extra-litúrgicas e pelo individualismo religioso; c) a divina Liturgia (com maiúsculo) celebrada como escuta, acolhimento, contemplação, admiração, louvor e ação de graças pelas maravilhas operadas por Deus, sobretudo pelo mistério pascal, presente na própria ação ritual, sufocada que fora pelo desesperado esforço meramente humano de “chegar até Deus” e salvar a própria alma[6].

7.      Cem anos de movimento litúrgico... cinquenta anos da Sacrosanctum Concilium, com um mare magnum de publicações em torno do espírito da divina Liturgia (a bibliografia é imensa e as pesquisas ainda continuam!...), versus mil anos de diáspora litúrgica por parte das massas populares e até mesmo das elites eruditas... Mil anos de deserto mistagógico!... É muita coisa, para um curto centenário de retomada do caminho!... Daí se entende a gritante e permanente defasagem existente entre o que um grupo de cristãos, relativamente muito pequeno, veio assimilando e já assimilou do espírito da liturgia resgatado pelo movimento litúrgico ou expresso pelos documentos oficiais da Igreja, e o que uma imensa multidão, a grande massa popular, ainda tem como padrão inconsciente agarrado em seus corpos, em se tratando religião cristã católica com seus rituais. E isso até mesmo entre as elites mais eruditas, fora ou dentro dos quadros da organização eclesiástica. Podemos ilustrar o que eu quero dizer, através de alguns exemplos.
8.      De saída, poderíamos evocar a reação pitoresca de um bispo, o bispo de Lérida (Espanha) durante o concílio Vaticano II, quando se sublinhava a importância do culto cristão. Reagiu assim: “Imaginem! Estão chegando ao cúmulo de por a liturgia dentro da missa!”[7]. Faz-me lembrar outro fato pitoresco: um registro do cronista do Convento do Sagrado Coração de Jesus, em Petrópolis, em 1934, a partir de um contato dos frades com o iniciador do movimento litúrgico no Brasil, o beneditino Dom Martinho Michler... Explico-me: a partir de então próprios frades começaram, cá e lá, a celebrar missas versus populum. Então o cronista deixou registrado que o povo estava gostando das “missas litúrgicas” (sic) que os freis celebravam!

9.      Lembro-me também de quando pesquisei sobre o movimento litúrgico no Brasil. Constatei que o que mais me saltou aos olhos foram os violentos conflitos entre duas concepções de espiritualidade: a apaixonante espiritualidade litúrgica, sendo descoberta, e as centenárias espiritualidades devocionais medievais e pós-tridentinas, padronizadoras do tecido cultural da nossa nação brasileira[8]. A partir daí comecei a entender o porquê da fortíssima tendência, existente até hoje, em se repetir inúmeros padrões medievais e pós-tridentinos de comportamento litúrgico e espiritual, não obstante o imenso trabalho já realizado no campo da reforma litúrgica.

10.  Por exemplo, a respeito da Eucaristia: No linguajar comum da imprensa brasileira (escrita e falada), como tenho observado inúmeras vezes[9], missa é uma “cerimônia” que se “encomenda” ou se “promove”, seja para “homenagear” alguém (vivo ou falecido), seja para celebrar ou abrilhantar a “memória” de alguma pessoa ou evento importante e, inclusive, para “festejar” e “comemorar” algum aniversário significativo... Uma cerimônia feita por um profissional religioso contratado (padre ou bispo), à qual a gente assiste. Ora, se é que a linguagem da imprensa expressa a cultura de um povo e, no caso, o imaginário religioso de um povo ou, então, o inconsciente coletivo dos católicos do nosso país, missa, para a grande massa popular, continua a ser entendida como sendo isso mesmo!... Esse é o padrão comum de compreensão... Portanto, algo bem longe do que o movimento litúrgico compreendeu e os documentos da Igreja definiram...
11.  A problemática é encontrável na própria elaboração do Catecismo da Igreja Católica. Enquanto na primeira sessão (nn. 1066-1209) se trata da celebração da liturgia como “obra da Trindade”, “fonte e ápice para o qual tende a ação da Igreja, e ao mesmo tempo fonte donde emana toda a sua força”, na segunda sessão (nn. 1210-1690), quando se trata dos sete sacramentos da Igreja (mormente a Eucaristia!), esquece-se de certa maneira o seu aspecto celebrativo (dimensão mais mistagógica) e privilegiam-se, como “fonte e ápice”, as doutrinas (em moldes escolásticos), as “verdades de fé” sobre eles... Em outras palavras, repete-se neste caso, veladamente, um velho padrão apologético, anti-herético, que é a preocupação acima de tudo doutrinal[10], em prejuízo de uma visão preferentemente mistagógica dos sacramentos!

12.  Voltando para a questão da Eucaristia... Há poucos dias, durante 10 minutos ouvi na igreja o relato da listagem de intenções da missa a ser celebrada: intenções por inúmeros falecidos com nomes citados, misturadas com intenções pelas almas em geral, pelas almas do purgatório, intenções de aniversário de falecidos, de um mês, sétimo dia, pelas treze almas benditas, pelo anjo da guarda, em honra de Santo Expedito (e outros santos), pela conversão de N., pela recuperação da saúde de N., em ação de graças pela recuperação da saúde de N., em ação de graças a Santo Antônio por graça alcançada, e assim por diante... uma listagem imensa!... É a compreensão que a grande massa popular tem ainda de celebração da Eucaristia como padrão assimilado... Uma reza, realizada pelo profissional do culto, que a gente “encomenda” numa determinada intenção.

13.  Há poucos dias, ainda, conectando-me num canal de televisão católico, deparo-me com uma solene adoração ao Santíssimo Sacramento. Altar cheio de velas. O padre com paramentos suntuosos (capa magna imensa etc.!). Ostensório imponente. Padre orando piedosamente, apaixonadamente, com tanta paixão que, ao microfone e transmitido pela TV, se desdobra numa extensa oração em língua estranha. Tudo tão solene e apaixonante que dá a nítida impressão de que aquele momento eucarístico é muito mais importante que a própria celebração da eucaristia, contrastando com o que nos apresenta a reforma pós-conciliar[11].

14.  A reforma conciliar nos resgata que Cristo é o verdadeiro sacerdote que preside e age na ação litúrgica. Em outras palavras, sua presença viva nos sinais (na assembleia, na pessoa do ministro ordenado, na Palavra proclamada, no pão e vinho consagrados, nos sacramentos em geral) é que nos preside. Tal presença foi, nas tradições mais antigas e genuínas da Igreja, re-presentada pelo Cristo pantocrator na abside, ou na forma de cruz pendurada sobre o altar[12], do espaço em que acontece a Eucaristia. E como o Cristo é representado? De olhos abertos! Só este detalhe já nos diz que somos presididos por Alguém que está vivo. Porém, o que ainda vemos em muitos espaços litúrgicos? Lá na frente, às vezes enorme, um Cristo crucificado, desfalecido, olhos fechados, morto. Como que dando-nos esta impressão: Somos presididos por um cadáver!... Esquecemos que aquele que passou pela morte, sim, ele está vivo; e é assim, vivo, que nos preside!... Esquecemos!... Pois é! É um padrão medieval que assimilamos, e não nos damos conta do quanto ele nos limita em termos de mistagogia do espaço litúrgico!

15.  Outra questão que ainda continua me intrigando. Antigamente, antes do Vaticano II, quando o sacerdote rezava a missa de costas para o povo (e em latim), o povo cria que o padre estava rezando (orando mesmo!) em estreito e profundo contato com Deus. Na boa fé, pois não via a cara do padre! Sem querer generalizar, é claro! Depois do concílio, voltado para o povo (como devia mesmo ser!), o padre se expõe, mostra a sua cara e, aos poucos, o povo sente como que uma decepção: percebe que na verdade os padres, de maneira geral, não rezavam, mas simplesmente liam um livro, e continuavam lendo o missal do mesmo jeito que antes, no mesmo padrão antigo, mesmo com o texto traduzido para o vernáculo: de maneira formal, mecânica, “no piloto automático”, sem manifestar convicção naquilo que estavam lendo, sobretudo em se tratando da oração eucarística (a oração mais importante!); orações feitas às carreiras e os ritos realizados igualmente de maneira muito formal, de qualquer jeito. Numa palavra: De maneira geral, a oração dos padres e os ritos que realizam não convenciam, pois não manifestavam fé, paixão, entusiasmo, amor... E continuamos assim, de maneira geral ainda hoje, também para os demais atores das celebrações (leitores etc.), repetindo os mesmo padrões antigos... Numa palavra: De maneira geral ainda não se assimilou o espírito da reforma do Concílio Vaticano II. O espírito da reforma não penetrou ainda no sangue, na mente, no coração, no corpo dos agentes das celebrações. Resultado: Porque os atores das celebrações litúrgicas (mormente na missa), sobretudo os principais, não estão qualificados como pessoas de fato orantes em seu agir ritual, continuam a repetir padrões antigos, e não conseguem contribuir para a formação e animação de discípulos e missionários de Jesus Cristo a partir da Liturgia. Pelo contrário, enfadam os participantes das assembleias que, aos poucos, buscam outros ambientes mais “convincentes” que não a Liturgia: nas seitas e em manifestações piedosas mesmo dentro da Igreja Católica, testemunhando inclusive que aí de fato “encontraram Jesus”, “tiveram uma experiência de Deus”. No meu entender, em grande parte, o êxodo dos católicos é motivado pelo não convencimento dos principais atores em seu agir nas celebrações litúrgicas.

16.  Entre os evangélicos, para um pastor ser pastor e, portanto, um pregador da Palavra, se investe pesado na sua formação. Eles são rigorosamente formados para ser um bom pregador, que convence, que mostra fé naquilo que prega, que mostra diálogo pessoal com Deus nas suas ações rituais (pregação, oração); além da rigorosa formação técnica para se comunicar com o público. Ora, sabemos que entre nós, católicos, além da pregação da Palavra, privilegiamos também a ritualidade, a sacramentalidade da Liturgia como expressão do mistério salvador. Privilegiamos a ritualidade como lugar de especial de experiência de encontro do Mestre conosco, a ritualidade como lugar de experiência de Deus. É nossa tradição cristã que, em grande parte, herdamos da tradição hebraica. Só que isso, por falta de qualificação dos nossos agentes celebrativos para a ritualidade (em seu sentido teológico, espiritual, pascal e sócio-transformador), o povo não consegue saborear o mistério presente nos ritos. Resultado, em termos de ritualidade, mais que a Liturgia, o povo “escapa” e vai valorizar mais as devoções (ao Santíssimo Sacramento, aos Santos etc.). Outros tantos, e são milhares, testemunham que “encontram Jesus” ouvindo a pregação convincente do pastor evangélico e participando de manifestações orantes mais convincentes ainda, coisa que normalmente não acontece ainda de maneira satisfatória nas celebrações litúrgicas católicas...
17.  O povo é por natureza orante. Vai para as igrejas para ter um encontro com Deus, ouvir Deus falar, sentir Deus falando... Ora, se nos próprios ministros, no exercício de suas funções, não se nota este “encontro deles com o mistério”, vai ser muito difícil para uma assembleia, com este tremendo “ruído” à sua frente, fazer a experiência de um encontro verdadeiro com o Mestre que nos chama para a missão!

18.  Lembro-me do que Bento XVI disse em seu discurso aos bispos do Brasil: que “a celebração eucarística é a melhor escola da fé”. E no discurso de abertura da V Conferência, o papa chama a atenção que “a assistência dos pais com seus filhos à celebração eucarística dominical é uma pedagogia eficaz para comunicar a fé e um estreito vínculo que mantém a unidade entre eles”. E depois diz: “O encontro com Cristo na Eucaristia suscita o compromisso da evangelização e o impulso à solidariedade; desperta no cristão o forte desejo de anunciar o Evangelho o testemunhá-lo à sociedade para que seja mais justa e fraterna....”. Como já se insistiu ultimamente sobre a ars celebrandi da Sagrada Liturgia![13] No entanto, eu me pergunto, da forma como as celebrações eucarísticas são normalmente presididas ou ritualizadas (como referi acima), como vai ser possível realizar isso que o papa afirma?

19.Enfim, uma última observação: Medellín, Puebla e Santo Domingo, se debruçaram sobre a importância da Liturgia na evangelização e vida cristã. Medellín e Puebla tratam especificamente da Liturgia em capítulo especial, inclusive com diagnóstico sobre a situação das celebrações no continente. Santo Domingo já nem tanto. E Aparecida? Lamentavelmente a liturgia não ocupa o lugar que deveria no seu Documento final. Contentou-se apenas com um parágrafo, inserido na última hora, na hora da aprovação final do documento. Fala-se da Eucaristia, há parágrafos sobre os sacramentos, mas, faltou a necessária ênfase à Liturgia como lugar privilegiado de encontro com Jesus Cristo e de formação de discípulos e missionários para que nele nossos povos tenham vida. Sem dúvida, essa é uma das maiores lacunas (se não a maior) do Documento de Aparecida[14]. Acha-se que a metodologia de trabalho adotada na Assembleia é que prejudicou. Será mesmo? Será que a liturgia é tão sem importância assim, a ponto de sua abordagem ser comprometida por uma metodologia de trabalho? Ou não foi um inconsciente coletivo ainda um tanto limitado em relação ao espírito liturgia a causa de tal prejuízo?

20.  Um último sentimento meu a partilhar. A Sacrosanctum Concilium é insistente no tocante à formação litúrgica. E com razão. De fato, a meu ver, por causa de uma formação litúrgica ainda deficiente e sem cunho mistagógico, aliada a certo poder “deformador” da mídia, corremos o risco de continuarmos no espírito cultual da cristandade medieval e pós-tridentina, com alguma tintura moderna apenas, mas longe do Espírito do Senhor, longe do centro da nossa fé (do mistério pascal de Jesus Cristo que nos empenha a um compromisso comunitário na vivência da fé). Corremos o risco de continuarmos a dar mais importância à “presença real”, às devoções ao Santíssimo Sacramento, do que à Eucaristia como celebração memorial do sacrifício pascal de Cristo que nos libertou e continua nos libertando. Corremos o risco de continuarmos a ver a missa apenas como “remédio que cura”, como se a celebração eucarística não fosse já a presença da salvação; ou como “coisa de padre” que se encomenda para ‘homenagear’ pessoas (vivos ou defuntos) e destacar eventos sociais, e não como ação comunitária participada por todos; ou como show para ser piedosa e entusiasticamente assistido, e não como ceia pascal dos cristãos em clima tranquilo de ação de graças. Corremos o risco de ver os sacramentos apenas como “remédio” (uma espécie de “vacina” contra os males), e não como celebração da Páscoa que nos libertou da raiz de todos os males. Corremos o risco de continuarmos com uma religião clerical, individualista, mágica e puramente devocional, sem compromisso comunitário, distante do projeto de Jesus Cristo. Sem formação litúrgica, e de cunho mistagógico, corremos o risco de vermos de certa maneira comprometida a reforma do Concílio Vaticano II.

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